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sábado, 10 de julho de 2010

O Free, de Chris Anderson. O quanto é real?

Sexta-feira, 16/10/2009
O Free, de Chris Anderson

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* O Free, do Chris Anderson, acabou chegando mais rápido do que eu esperava, no Brasil. Mesmo assim, acabei adquirindo aedição em inglês. O livro veio cercado de muita expectativa... Quando li o primeiro artigo sobre o conceito de "free", ainda naWired, estávamos à beira da crise econômica mundial, e, na minha cabeça, sua argumentação não fez o menor sentido... Parecia que Chris Anderson queria levar as ideias do Long Tail, seu livro anterior, às últimas consequências. Me ocorreu, ainda, que a indústria editorial podia tê-lo obrigado a produzir uma nova obra-prima — mas, como sabemos, isso não se dá, assim, industrialmente... O seu insight, do Long Tail, é brilhante, mas, antes de entrar em Free, não acho que ele conseguiu repetir o feito. A polêmica subsequente se revelou quase tão interessante (ou mais) que o livro... Primeiro, Chris Anderson foi atacado por Malcolm Gladwell, autor de Outliers, na New Yorker. E, de certa maneira, foi decepcionante constatar o quanto Gladwell se mostrou conservador para defender... a New Yorker. (Ou seja: você pode ter ideias bem modernas sobre as coisas, mas, quando o assunto envolve seu emprego, você retrocede às posições mais tacanhas...) Seth Godin, guru do marketing na internet, veio em socorro de Anderson. E alertou Gladwell: o mundo se transformou, pare de defender o que vai acabar, se você não quiser acabar junto... 

* Mas vamos às ideias de Anderson, antes que alguém se perca pelo caminho... Em Long Tail, ele defende que a participação dos blockbusters, que antigamente dominavam os mercados de cultura (por exemplo), é cada vez menor; e que a participação do "resto", uma cauda longa, de vários produtos que vendem pouco, com preços tendendo a zero, é cada vez maior. Chris Anderson usou, principalmente, exemplos da Amazon e de outras lojas virtuais, como a locadora Netflix. Num ambiente de "tijolo e cimento", o comércio desses itens, de pouca saída, ficaria impedido — ao contrário do que acontece na internet, onde o custo de armazenamento é consideravelmente menor e onde essa economia, antes escondida, da cauda longa (long tail), poderia se manifestar e se revelar mais plenamente. O resumo da ópera é que, com o advento da internet, a tal "cauda longa" seria responsável por metade do movimento em e-commerce — e que suas possibilidades, de comércio de poucos itens, e de pequenos fornecedores, criaria mercados antes impossíveis (na economia real). Assim, num mundo ideal, um escritor de poucos leitores, um músico de alguns ouvintes, um cineasta de público reduzido, sobreviveriam, encontrando suas respectivas audiências, graças à internet. 

* Em Free, Anderson pega essa ideia dos "preços tendendo a zero" e extrapola, imaginando um mundo em que quase todos os produtos seriam de graça, e onde se ganharia fazendo uso de outras modalidades econômicas, como serviços. Nas chamadas indústrias culturais, isso é mais fácil de se entender porque, de certa forma, já está acontecendo. Não entrando aqui em dilemas éticos sobre coisas como "pirataria" e direitos autorais, o fato é que você pode adquirir músicas praticamente de graça hoje, filmes quase de graça, informação praticamente de graça, também, e os preços dos livros — com o Kindle e similares — tendem a cair sensivelmente... Chris Anderson extrapola no sentido de dizer: "Já que é quase de graça, ou os preços tendem a zero, vamos 'dar de graça' logo de uma vez..." O exemplo maior dele, em Free, é o Google. O maior mecanismo de busca na internet está criando um ecossistema onde você tem tudo de graça — e-mail, processador de texto, planilha, calendário, mapas, navegador, vídeos etc. —, mas que, idealmente, se sustenta com publicidade. (É questionável sob muitos aspectos, mas vamos prosseguir, para concluir o raciocínio...) Conclusão: do mesmo jeito que o Google "dá de graça" — para ganhar dinheiro de alguma outra forma depois —, deveríamos assumir que alguns produtos já são de graça mesmo, e tentar criar uma nova economia que justifique produzi-los daqui pra frente. 

* Onde está o furo de Free? Inicialmente, no fato de que as-coisas-que-estão-na-internet são de graça, só porque podem ser distribuídas (quase) gratuitamente. Ou seja: um álbum pode parecer de graça, para quem o baixa, porque, afinal, fora o preço da conexão, e o tempo, não custou quase nada encontrá-lo, fazer seu download e ouvi-lo imediatamente. Se assumirmos sua "gratuidade", estamos ignorando o custo de gravá-lo, produzi-lo, empacotá-lo, divulgá-lo e distribui-lo (no mundo real). No mínimo, os músicos passaram anos praticando; o produtor passou horas no estúdio; os técnicos de som, idem; as gravadoras tiveram de prensá-lo; o marketing teve de torná-lo conhecido; e a logística permitiu que ele fosse palpável ao consumidor. Claro que não é mais 100% assim, mas — para a maioria do conteúdo que adquirimos on-line durante anos —, foi assim (vamos assumir). Logo, a aceitação do free de Chris Anderson, seria uma espécie de "perdão" pelas nossas "transgressões" on-line, uma "socialização" dos prejuízos (embora eles sejam incalculáveis) e, sobretudo, uma atitude resignada no sentido de admitir que as pessoas, os consumidores, não vão mais pagar, como pagaram, por coisas como discos, filmes, periódicos e até livros... 

* Onde está o segundo furo de Free? No Google. O Google pode dar de graça, por enquanto, processadores de texto como o Word, planilhas eletrônicas como o Excel, armazenamento praticamente infinito de e-mails na internet (Gmail), vídeos que custariam dinheiro no YouTube, mapas que antes comprávamos em bancas de jornal, entre outras coisas, porque fatura bilhões com a venda de palavras-chave associadas a seu mecanismo de busca (onde é líder de mercado etc.). Mas tirando as buscas, e o AdWords, todo o resto, praticamente, dá prejuízo para o Google. O Google, por mais admirável que seja nas suas iniciativas de não nos cobrar por todos esses serviços, cria uma "bolha" no mercado de internet, financiando sites insustentáveis como o YouTube, e desenvolvendo produtos quase pelo prazer de desafiar o reinado da Microsoft, porque Eric Schmidt (CEO) é da mesma geração de Steve Ballmer — entre outras ferramentas, como o Google Earth, que não fazem o menor sentido economicamente, mas que criam uma ilusão, futurista, de que o "de graça" (free) está se expandindo no universo... (Seria como se a mesma Microsoft, em sua riqueza de bilhões em outras décadas, resolvesse fabricar carros de graça, pelo simples prazer de concorrer com a GM, a Ford ou a Toyota.) 

* Portanto, uma consequência lógica disso tudo é que nem todo mundo pode sustentar um modelo de negócios onde o "de graça" assume um papel primordial na estratégia. (Mesmo considerando que o Google se mantenha assim — dando tudo de graça — por toda a eternidade...) Já sabemos, pelo que estamos assistindo, desde a chegada da internet, que gravadoras não podem dar seus discos de graça; estúdios de cinema não podem dar ingressos para as salas, nem DVDs, de graça; revistas e jornais não podem entregar seus exemplares de graça; e, muito possivelmente, editoras (e autores) não podem abrir mãos de seus livros de graça... (Por enquanto, estou trabalhando com o mainstream — que, por esses e por outros motivos, está ruindo desde as últimas décadas do século passado...) Tudo bem, estamos criando outros modelos, que surgiram junto com a internet, mas será que essas novas estruturas vão permitir, culturalmente, o florescimento de novas iniciativas como foram, no auge do século XX, a indústria fonográfica, a indústria do cinema, o mercado editorial, a mídia eletrônica e a grande imprensa? Porque o free, de Anderson, não se aplica ao "velho mundo". Se esse conceito for uma tendência — como afirma categoricamente o mesmo Schmidt do Google —, podemos ir dando adeus ao mainstream e mergulhando, ainda mais fundo, no underground que a internet trouxe... 

* Agora, vamos aos acertos do Free, de Chris Anderson... Em primeiro lugar, é inegável que, com a internet, surgiu, por exemplo, uma "economia da colaboração". Por mais que se desqualifique a informação na Wikipedia, digamos, é notável que um projeto desses tenha surgido, consiga se manter no ar e se sustente, basicamente, graças às iniciativas de seus colaboradores, de produzir artigos... de graça. Ou em troca de valores intangíveis como "reconhecimento", "status", "reputação". Não creio que a motivação principal de Jimmy Wales, ao criar a Wikipedia, tenha sido minar os modelos de negócio das enciclopédias anteriores (em papel) — mas é óbvio que a Wikipedia, mesmo com todos os seus erros, se coloca como uma ameaça a elas. Da mesma maneira que a blogosfera se coloca como uma ameaça ao jornalismo em papel ou, ao menos, como uma ameaça ao jornalismo de grande imprensa na internet. Ninguém vai preferir, conscientemente, se informar pela blogosfera, mas pode acabar se distraindo com ela — e com seu próprio blog —, consumindo, no fim das contas, menos jornais, revistas e até sites da chamada grande mídia. Para essas pessoas, que produzem esse conteúdo, tanto em blogs, quanto em redes sociais, quanto em wikis, o conceito de free se aplica — porque estão entregando um "produto", conteúdo, "de graça" (em troca de alguma motivação mais "social"), enquanto estão, quase sempre inconscientemente, minando um modelo de negócios anterior a elas... 

* A habilidade de Chris Anderson — outro acerto — está, justamente, em querer capitalizar em cima dessa "economia da colaboração". Ele, obviamente, sabe que o velho mainstream não tem como competir com o "de graça". E, pior, o velho mainstream não tem sequer como embarcar no "de graça" — porque estará, muito possivelmente, canibalizando seu negócio principal. E Chris Anderson não está, em absoluto, preocupado em salvar o velho mainstream (o que pode ter irritado Malcolm Gladwell e a New Yorker), mas está preocupado em olhar para frente, incentivando modelos que sustentem o "de graça" (além do Google). Quem pagou a conta do Blogger — e dos milhões de blogs que foram criados na sua plataforma desde 1999 — foi o Google, que adquiriu a ferramenta em 2003, desejando convertê-la em mais um suporte para a sua rede de anúncios na internet (AdSense). Será que pagou, mesmo, a conta? Não sabemos; mas pode ter pago, sim. Tirando o Orkut, que notoriamente dá prejuízo, outra iniciativa que talvez pague a conta, atualmente, é o Facebook. Nesta altura do campeonato, nem Mark Zuckerberg, o fundador, entende como se sustenta a maior rede social do mundo, com mais de 200 milhões de usuários, mas o fato é que já existe uma economia — de anúncios, de marketing direto, de comércio de itens virtuais etc. — que fatura milhões por ano. Sem mencionar o Twitter... OK, o site não tem um modelo de negócios ainda, mas seus investidores não estão brincando a ponto de "financiar" bilhões de tweets à toa... 

* E Chris Anderson acerta, mesmo que não seja economista, quando diz que, digitalmente, estamos vivendo uma "economia de abundância", ao contrário da "de escassez" de antes. Tudo bem que "economia de abundância" vai contra o próprio conceito de economia — a ciência das escolhas num mundo de recursos limitados (ou escassos) —, mas, ao mesmo tempo, ganha sentido se formos pensar que, hoje, temos de escolher, sim, no meio da abundância digital. Abundância de informação, por exemplo.Nas intermináveis discussões sobre feeds e Twitter (como fontes de informação), optamos, antes, pelos fluxos, pelas torrentes ou até pelas correntes que vamos evitar, para chegar, finalmente, no que desejamos consumir. Sem falar nos mesmos discos, filmes e, daqui a pouco, livros — que, de raridades, passaram a nos cercar em downloads frenéticos que ninguém mais consegue usufruir, em e-mails com os próprios arquivos ou indicações insistentes "para baixar", ou até em ofertas, de queima de estoque em lojas de e-commerce, apelando para um passado nostálgico de... escassez de recursos? Claro que existe o "outro lado da moeda": o excesso de informação provoca "escassez de atenção". Gosto de dizer que o nosso tempo não mudou, o nosso dia continua tendo 24 horas e, por mais que a expectativa de vida tenha aumentado, não vamos viver indefinidamente... Mas, ainda que átomos não sejam sintetizados em laboratório como bits, Anderson acerta ao propor uma conversa inevitável para os próximos anos: a da abundância de commodities digitais. 

* Free como livro, no final das contas, não é uma realização de monta como foi The Long Tail. Talvez porque, para quem acompanha as ideias de Chris Anderson, o primeiro é apenas a consequência lógica do segundo. Sem contar que a onipresente crise econômica deve ter soado o alarme dos editores, exigindo um capítulo inteiro apenas sobre esse assunto e um excesso de exemplos de produtos "de graça" (para justificar o título do livro) que podem ter diluído o potencial ensaístico do autor da expressão "cauda longa". Free, contudo, é uma das principais iniciativas no sentido de tentar entender essa nova economia, que não é só pirataria, como gostariam os detentores dos copyrights — e que engaja milhões de pessoas, diariamente, em blogs,wikis e redes sociais, ameaçando, mesmo que inconscientemente, o velho establishment da comunicação e da cultura (para não falar em outras indústrias). Quem nasceu dentro da internet, em termos de modelo de negócio, tem de ler Free — nem que seja para desenvolver novas táticas de sobrevivência. E quem antecede a internet, mas deve lidar atualmente com ela, tem de ler Free — nem que seja para encontrar a saída que o próprio autor não encontrou: como fazer a transição de uma "economia de átomos" para uma "economia de bits" (sem matar o negócio)? A escassez do mundo real não vai acabar tão cedo, mas a abundância do mundo virtual já é um problema para nós — e talvez essa seja mais uma razão para ler o livro de Chris Anderson: precisamos entender direito o que é esse "free" e o que vamos fazer dele daqui em diante...

Para ir além


Julio Daio Borges
São Paulo, 16/10/2009

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