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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Domenico de Masi no Roda Viva - TV Cultura - 04/01/1999 2o. programa

Car@s, boa noite.


      Anexa a transcrição da segunda entrevista de Domenico De Masi no Roda Viva – TV Cultura - 04/01/1999. (Disponível em site da FAPESP)


      Nesta segunda entrevista De Mais complementa os pontos discutidos na primeira (03/12/1998)

     Impressionante como continuam atuais os desafios identificados. Velhos hábitos custam a passar!!!  ("As lições sabemos de cor. Só nos falta APRENDER". E aprender é VIVER)

     Desejo-lhes um bom Ócio Criativo nesta leitura.

    Preparar esta mensagem certamente o foi para mim.

    Um tempo realocado da Distração (TV, bar,..) para a Reflexão (construção da Consciência).

    Síntese dos tópicos tratados neste segundo programa (1999):
·    Crise das grandes cidades (de trânsito, de poluição, de segurança, de excesso de população)
·    Crise da  sociedade industrial
·    O Brasil como síntese dos problemas globais (Bélgica e Índia lado a lado – São Paulo e Rio no pós-industrial / áreas do Nordeste na agricultura de subsistência (“pré-industrial”)) e, portanto, como Potencial de Solução
·    Desempregados versus sub-empregados versus trabalhadores informais versus hiperativos profissionais (sem vida pessoal, familiar, artística, social, política)
·    Denúncia de que a isenção de impostos para os ricos, reduzindo as políticas do Estado de Bem-Estar Social, não gera aumento de investimentos – comprovado por estatísticas da OCDE. O que gera é altos salários para os executivos do topo das corporações e especulação financeira. E o investimento produtivo decrescente é feito em máquinas e processos e não na geração de empregos!!!
·    Turbo Capitalismo: excesso de maximização da produtividade financeira dos recursos – humanos, naturais, etc. – resultando em concentração de fortunas nas mãos de altos executivos e acelerada especulação financeira nas Bolsas (denúncia premonitória - onze anos atrás !!! - da Exuberância Irracional dos Mercados Financeiros – que acabou estourando em 2008)
·    Burocracia como impessoalidade nas relações com o público – a escola francesa – versus a burocracia como carrasco da Criatividade versus o Clientelismo Político
·    O Comunismo mostrou que sabe distribuir a riqueza, mas não sabe produzi-la. O Capitalismo, no entanto, mostrou que sabe produzir a riqueza, talvez até demais, mas não sabe distribuí-la. Precisamos de um sistema intermediário (ou de uma síntese que os supere – citadas as idéias do Papa João Paulo II [Karol Józef Wojtyla – um grande conhecedor dos defeitos do Capitalismo e do Comunismo] que precisam de uma versão laica)
·    Os economistas americanos que, por estarem no epicentro daquele sistema, notam a aberração daquilo que chamam de "turbo capitalismo". Um capitalismo perigosíssimo. E nós temos de criar uma terceira via, até para ajudar os americanos
·    No universo dos criadores encontramos de tudo. Não ter características é a característica da criatividade.
·    Keats [John Keats, 1795-1821, poeta inglês] dizia que a obra de arte é uma alegria criada para sempre. Eles nos deram tantas alegrias, que podemos até perdoar alguma fraqueza de sua parte. Mas não podemos perdoar tantos ricos que têm um enorme cinismo e que nem alegrias nos proporcionam.
·    Se um novo modelo deve surgir, surgirá dos países que não pertencem ao primeiro mundo. E surgirá de mulheres. São as mulheres dos países do segundo e terceiro mundo. Sobretudo as do segundo, pois o segundo mundo, o dos países emergentes como o Brasil, já tem uma série de fatores culturais muito avançados, mas mantém ainda a ingenuidade de um país subdesenvolvido.
·    O que será necessário na sociedade pós-industrial, isto é, no próximo século [referindo-se ao século XXI], é a criatividade. A criatividade é uma síntese de fantasia e concretização. Por sua vez, a fantasia é a síntese do inconsciente e da esfera emotiva. Nós, homens, cultivamos, sobretudo a razão, a dimensão da concretização. E devo dizer que as mulheres também têm culpa nisso, porque o machismo, como dizia uma grande feminista, é como a hemofilia: "acomete os homens, mas é transmitida pelas mulheres [risos]". Foram as mulheres, as mães, que ensinaram os homens a serem machistas. E, naturalmente, isso nos agradou, porque o poder, como diz um provérbio napolitano, "agrada mais que muitas outras coisas".
·    Para começar, uma primeira etapa é, obviamente, abolir os escritórios fechados e os lugares demarcados. Mas a segunda... o muro que cerca a empresa. Hoje a empresa é a última fortaleza, o último castelo que sobrou. Ao entrarmos numa empresa damos os documentos, recebemos o crachá, como numa grande prisão. Agora, enquanto o visitante tem de entregar o crachá, porque só podem entrar com autorização, milhares de informações entram e saem sem nenhum documento [mexe as mãos de um lado para o outro], por telefone, fax e correio eletrônico.
·    Uma desestruturação total do trabalho é o próximo passo. Pois o trabalho intelectual, o trabalho já realizado por 60% ou 70% da população ativa, por ser mental, pode ser feito em qualquer lugar, em qualquer lugar onde a informação possa nos alcançar. Em qualquer lugar, onde possamos contatar os outros através de telefone, fax e internet.
·    Por isso, o local e o tempo do trabalho não têm mais sentido. Toda aquela massa enorme de aparatos burocráticos que as firmas e os ministérios usam para controlar horários de entrada e saída dos trabalhadores é completamente inútil. Eles poderiam ficar em casa, sempre que lá pudessem fazer determinado trabalho. Poderiam ir ao escritório só se necessário para uma reunião ou para lidar com algo que não possa ser deslocado para casa. Isto é necessário.
·     Ontem, no Rio [Rio de Janeiro], passei praticamente o dia tendo de me deslocar dentro da cidade, não menos de 4 horas no carro. Imaginemos que isso leve, em média, duas horas. E imaginemos que, no Brasil, 20 milhões de pessoas passem todo dia duas horas no carro. São 40 milhões de horas ao dia praticamente desperdiçadas. E é o sacrifício pago por uma cidade organizada pelo critério de linha de montagem. Como se ainda todo o trabalho fosse feito em um alto-forno e fosse necessário sair de casa e ir ao escritório.
·    Então, o senhor fez muito bem desestruturando tudo aquilo. Os arquitetos têm de fazer o mesmo, assim como os dirigentes e os chefes de pessoal. Hoje se tem ainda uma visão, eu diria, clintoniana, das relações de trabalho. Ou seja, é preciso ter os dependentes à mão, de forma tangível. Não há nenhuma necessidade disso. Podemos estar juntos quando necessário e dialogar à distância quando necessário.
·    Claudia Costin: E que tipo de mudanças o senhor acredita que poderiam ser feitas no sistema escolar para que a escola não preparasse exclusivamente para o trabalho?
·    Gilberto Dimenstein: Posso acrescentar? A escola prepara para a criatividade ou ela prepara para alguém que memoriza e que reproduz informações memorizadas?
·    Domenico De Masi: Este é o problema. Se meus alunos - os que tenho na classe e que têm 20 anos - sei muito bem que terão 70 mil horas de trabalho, mas que, no entanto, terão 530 mil horas de vida, ou seja, sabe-se que o trabalho é um sétimo de suas vidas.
·    Por que, então, devo dedicar a escola apenas para prepará-los para o trabalho [faz gesto de unitário com as mãos]? O trabalho se tornou uma categoria onívora. Uma categoria que consome tudo: a família, a sociedade, a escola. Só preparam o garoto para o trabalho, só para o trabalho. Mas, o trabalho não é tudo. E, no entanto, há atividades que, mesmo sendo pesadas, são importantes, mas não são consideradas trabalho. O trabalho é uma convenção.
·    Uma mulher que cuida do filho não trabalha, de acordo com as estatísticas. Se a mesma mulher cuidar do filho de outra é considerada trabalhadora [risos]. E recebe o salário de babá. Se essa mulher cuidar de trinta garotos ao mesmo tempo é considerada professora. E recebe, então, outro tipo de salário. É tudo uma grande convicção teatral. É um grande teatro a questão do trabalho e do tempo livre.
·    Agora, se o que aguarda o jovem são 1/7 de trabalho e 6/7 de tempo livre, a escola, a sociedade, a família e os meios de comunicação de massa devem ensinar esse jovem como usar esse tempo livre. Porque, no tempo livre, podem nascer idéias, pode haver grandes explosões de criatividade, mas pode haver também droga, violência, dissipação, inutilidade e tédio.
·    Domenico De Masi: Este senhor me perguntava precisamente como ensinar o tempo livre. O tempo livre se ensina com o próprio tempo livre. Mas, não se trata mais tanto de tempo livre, pois, quando as atividades são manuais, como as de um mineiro, há uma divisão clara entre as horas de trabalho e as horas fora do trabalho. Mas quando a atividade é intelectual, temos aqui um publicitário, como distinguir o tempo de trabalho do tempo livre? Se ele estiver aflito porque tem de achar um slogan ou a solução de um problema de um cartaz publicitário, essa aflição estará sempre presente, até de noite. Ele até pode achar a solução ao amanhecer, ainda sonolento... [sendo interrompido]
·    Washington Olivetto: [interrompendo] Você até controla a hora de fazer, mas não controla a hora de não fazer.
·    Domenico De Masi: Ótimo. É isso mesmo. Hoje, tudo está mesclado. Estudo, trabalho e tempo livre são uma coisa só. Vou dar um exemplo. O que estamos fazendo agora? Estamos estudando? Bem, às vezes, até trocamos idéias. Estamos trabalhando? Em certo sentido, sim. Estamos nos divertindo? Eu estou. [risos]
·    Claudia Costin: Mas essa questão da ruptura, do tempo livre, do trabalho, remete às sociedades indígenas, por exemplo, que é um exemplo que nós temos no Brasil. Quer dizer, nas sociedades indígenas não há essa ruptura entre tempo livre e trabalho. E, aparentemente, o ser humano, na sociedade industrial, quebrou isso. E eu estou ainda voltando à questão da escola. Como é que a escola recupera esta junção, do prazer do aprendizado... É bom, é gostoso aprender? E como que a gente aprende não só para produzir?
·    Domenico De Masi: Claro, naquelas sociedades primitivas, estudo, trabalho e tempo livre são uma coisa só. Mas não são produtivas. Devemos achar um modelo que preserve a produtividade e o lazer.
·    Quando minha mãe pensava num trabalhador, pensava num camponês, pois ela vinha do campo. Quando nós pensamos num trabalhador, pensamos em Charles Chaplin de Tempos Modernos [filme de Chaplin, lançado em 1936 que retrata a vida de um homem que tenta sobreviver aos avanços industriais do mundo moderno]. Aqueles fotogramas são terríveis, porque gravaram em nossa mente que o trabalhador é um metalúrgico mecânico na linha de montagem.
·    Mas, hoje, em 80% dos casos, o trabalhador é um intelectual. É o funcionário, o dirigente, o profissional. São pessoas que trabalham com a cabeça, não com as mãos. Então, para que ter um aparato arquitetônico, um aparato de controle e disciplina como se fossem metalúrgicos mecânicos analfabetos do começo do século? A empresa não renovou sua organização. Ela apenas renovou seu maquinário e substituiu os operários por funcionários e dirigentes. Só isso.
·    Caco de Paula: [interrompendo] Professor, desculpe interrompê-lo. É justamente nesse momento em que o senhor identifica que a empresa, pode ser empresa ou Estado, renovou seu maquinário, mas não renovou a sua organização... a gente vendo o que o senhor escreveu, a respeito de todas as sociedades as mais primitivas, a pré-industrial, a industrial, a pós-industrial, a gente vê uma idéia subjacente de evolução na questão tecnológica, que possibilita ter as horas livres.
·    No entanto, parece que todo curto-circuito que existe em discutir as horas livres com a felicidade do homem, é a gente perceber que há um descompasso muito grande entre a solução tecnológica, como o homem consegue rapidamente a solução tecnológica e uma dificuldade, não sei se uma falta de criatividade, para encontrar a solução de convívio social.
·    Assim, como o senhor vê uma evolução no que diz respeito à máquina, o senhor acredita que o homem tem... O senhor tem, digamos assim, uma expectativa otimista com relação à evolução de consciência, evolução social do homem? Ou esse curto-circuito ainda vai continuar sendo tão grande?
·    Domenico De Masi: Eu acho que, quando o ser humano toma consciência de um problema a fundo, costuma achar a solução. O problema é quando não toma consciência ou quando o subestima. Nos últimos dias, conversei com muitos intelectuais aqui no Brasil. São extraordinários, muito ativos, muito inteligentes e criativos. Tomo a liberdade de fazer apenas uma crítica. Parece-me que já se acostumaram a conviver com as diferenças sociais e não as notam mais.
·    Ao passo que quem vem da Europa não consegue entender como pode haver, a poucos passos de distância, como no Rio de Janeiro, a maior favela da América Latina [favela da Rocinha, com aproximadamente 150 mil habitantes, fica ao lado de bairros como São Conrado e Gávea] e o bairro dos milionários. Mas, parece que, por força da convivência, como por um mecanismo de defesa psicológica, até o intelectual brasileiro se habituou um pouco a tudo isso. Ou julgam-no uma fatalidade que não pode ser eliminada.
·    Mas eu acho que nós aprenderemos a usar as máquinas, desfrutando-as ao máximo, ou seja, delegando às máquinas todo o trabalho nocivo, perigoso, pesado e nos habituarmos a viver com nosso grande monopólio, que é o trabalho intelectual.
·    Marcos Antônio de Rezende: Professor, embora os leitores da minha revista, por enquanto, estejam garantindo meu emprego, a questão do desemprego me preocupa. Chateia-me. Eu acho que é uma coisa realmente dramática. O senhor disse, num dos seus escritos, acho que era uma proposta sua... o senhor reflete sobre o fato de que muitos executivos trabalham 10, 14 horas por dia, enquanto colegas ou filhos desses executivos não trabalham nenhuma, porque não têm emprego. E uma das propostas do senhor é, justamente, dividir.
·    Cada um trabalha menos para mais gente trabalhar. Mas é possível isso em termos concretos? O senhor acha que é possível organizar o mundo de forma que as pessoas trabalhem menos para que mais pessoas trabalhem?
·    Domenico De Masi: Eu trato disso em meu livro O futuro do trabalho, que vai ser lançado aqui no Brasil.
·    Acaba de sair na Itália. E foi bem recebido. Houve duas edições numa semana. Mas foi muito criticado pelo Jornal da Confederação das Indústrias, que disse: "Quem vai pagar o tempo livre?"
·    É óbvio: quem paga são as máquinas e a produção social!
·    Mas, voltando ao assunto, acho que os problemas no mundo são ao menos três. O primeiro, habituar cinco bilhões de pessoas que nunca trabalharam a começar a trabalhar. O que faz o cidadão da favela, ou o cidadão pobre do Cairo, quando acorda de manhã? Ele não vai ao escritório. Ele deve ir à luta até a noite, tentando sobreviver. Então, esses cinco bilhões seriam educados, aos poucos, para um trabalho produtivo. É uma obra colossal, pois começa na escola [junta as mãos].
·    Mas, simultaneamente, o bilhão de cidadãos do primeiro mundo seriam educados para trabalhar menos. Assim como os primeiros sofrem, é claro, sem culpa alguma, involuntariamente de ócio obrigatório, os segundos sofrem, com culpa, de hiperatividade. O fato de um dirigente ir ao escritório às 8:00 para sair às 20:00, descuidando totalmente da família, descuidando totalmente da vida política e social, descuidando totalmente de si mesmo... Não vai ao cinema, ao teatro, não lê, não pára um instante para apreciar a beleza do universo, das obras de arte, de tudo que nos é dado gratuitamente. Isso significa depauperar a si mesmo e aos outros, sem nenhum motivo. Não existe um motivo para justificar isso.
·    Quando o operário ficava na linha de montagem, se ficasse lá o dobro do tempo, produzia o dobro de porcas. Se um intelectual fica o dobro do tempo no escritório, ele não produz o dobro, produz a metade. Se o nosso publicitário ficasse 12 horas ao dia sentado no mesmo lugar, falando com as mesmas duas ou três pessoas, fechado no mesmo escritório, falando das mesmas coisas, sempre oprimido por uma burocracia imunda, sempre num contexto esteticamente asséptico como um hospital, ele não poderia criar absolutamente nada.
·    A criatividade provém da variedade. A criatividade advém da combinação, do jogo, da amizade, do amor, do lazer, da introspecção. E o dirigente não pode fazer nada disso. O dirigente que sai da Business School [escola voltada para a formação de profissionais que seguem carreira de negócios] americana, cujo objetivo é a competitividade, a competitividade destrutiva, em vez de uma emulação solidária, é uma pessoa perigosa para si mesma, perigosa para os outros e para a democracia. De fato, foi daquele mundo, daquele centro social muito perigoso para si próprio e para os outros, que surgiram a globalização selvagem e o turbo capitalismo.
·    O mundo está se feminilizando, pois, em 200 anos da sociedade industrial, de meados do século XVII a meados do século XIX, os homens se reservaram o mundo da produção. Reservaram às mulheres o mundo da reprodução e fizeram a cisão: a produção na empresa e a reprodução em casa. E descartaram do mundo da produção todos os valores considerados inferiores: a subjetividade, a estética, a ética e a emotividade. Esses valores tornaram-se quase um monopólio da mulher. O homem se envergonha ao se comover, por exemplo.
·    Mas, esses valores que detestávamos e que, portanto, deixamos para as mulheres estão se tornando dominantes, pois, na sociedade pós-industrial, baseada na criatividade, não há possibilidade de criatividade sem estética, sem ética e sem emotividade. É aí que emerge a mulher, ela que foi escrava desses valores e deles está imbuída, hoje, já liberada, na medida em que se liberta dessa opressão, consegue expressar-se.
·    Quando cheguei a São Paulo, tive uns momentos de folga enquanto aguardávamos o carro. E andei um pouco pela livraria do aeroporto. É interessante notar que quase metade dos livros é escrita por mulheres. Isso acontece com os filmes. Se assistirmos aos filmes... Quase não percebemos, mas hoje, um número enorme de cineastas é constituído por mulheres. Era um papel que antes cabia à gente.
·    Minha grande amiga, a cineasta italiana Lina Wertmüller, era a única cineasta do mundo. Tenho absoluta certeza de que desse advento da grande feminização nascerá uma sociedade nova. Naturalmente, as mulheres que estão se masculinizando cometeriam um erro gravíssimo, porque acabariam se masculinizando justamente quando isto não serve mais. É como os italianos que foram colonizar a África quando os outros iam embora
·    Paulo Markun: A pergunta que eu faço é a seguinte: parte dos problemas que o senhor abordou e parte das soluções que o senhor propõe dependem, em grandes instâncias, da decisão de grandes empresários, políticos, da mudança das relações dos países, das definições de vocações, de um projeto de país?
·    Agora, tenho a impressão que existe alguma parte disso que pode depender da vontade de cada uma dessas pessoas. Então, eu perguntaria: que parte é essa e se é possível a cada um, de algum modo, dar a sua pequena contribuição para que essas mudanças, no bom sentido, aconteçam?
·    Domenico De Masi: Cada um pode dar uma contribuição fundamental. Grande parte das pessoas tidas como civilizadas, isto é, já destituídas, espero não em definitivo, de sensibilidade humana, pensa que tudo que pode agradar custa. E, se não há dinheiro, não há nenhuma possibilidade de usufruir o tempo livre.
·    Todos deviam começar a pensar sobre o que são os grandes luxos da sociedade contemporânea. O luxo é uma coisa rara. Era um luxo ter uma carruagem quando ninguém a possuía. Hoje, somando tudo, o que é raro?
·    O tempo é raro. Um número enorme de pessoas, embora a média de vida tenha dobrado em duas gerações e haja instrumentos para economizar o tempo, tem a impressão de nunca ter tempo.
·    Um segundo luxo é o espaço. Ter espaço. No Brasil, o espaço é infinito. O mundo tem espaço infinito. Porém, há poucos meses, pela primeira vez, a população que vive nas cidades superou os 50% da população mundial.
·    Portanto, tempo, espaço e, depois, solidão. Nós precisamos também de momentos de solidão. Precisamos também de momentos de introspecção.
·    E, depois, segurança. Precisamos viver em ambientes onde possamos sair à noite, passear e admirar a lua à noite, como o sol de dia, com toda a segurança de que isso não nos cause problemas.
·    E, depois, autonomia. Aquela autonomia que nos é tolhida pela cidade, nos é tolhida pela empresa e por toda a burocracia que nos sufoca.
·    Então, esses luxos, tudo somado, são luxos que podemos ter gratuitamente. É preciso educação. Uma educação - é óbvio - para aquele sétimo de vida que o jovem terá de passar no trabalho e naqueles 6/7[seis sétimos] de vida, importantíssimos, que o jovem passará no chamado tempo livre.

Um abraço.

Claudio

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Domenico De Masi no Roda Viva – TV Cultura - 3/12/1998 <<>> Mais de onze anos após: "As lições sabemos de cor. Só nos falta APRENDER". E aprender é VIVER

Car@s, boa noite.

      Veja a transcrição da entrevista de Domenico De Masi no Roda Viva – TV Cultura - 3/12/1998. (Disponível em site da FAPESP)

      Ver em:  http://migre.me/15g8J


(http://docs.google.com/leaf?id=0B392uOrJBjmSMWVkMGE3ZWUtODFmNi00ZGFlLTk0NmEtNGY3NTAyMGJlOTA2&sort=name&layout=list&num=50)

     Impressionante como continuam atuais os desafios identificados. Velhos hábitos custam a passar!!!  ("As lições sabemos de cor. Só nos falta APRENDER". E aprender éVIVER)

     Desejo-lhes um bom Ócio Criativo nesta leitura.

    Preparar esta mensagem certamente o foi para mim.

    Um tempo realocado da Distração (TV, bar,..) para a Reflexão (construção da Consciência).

    Transcrevo abaixo algumas frases tiradas do texto:

Em 800 gerações, desde o homem de Neandertal [hominídeo que teria vivido há cerca de 125.000 a 30.000 anos atrás] até nossos avós, a média de vida humana girou sempre em torno de 29 a 30 anos, cerca de 300.000 horasQuanto aos nossos bisavós na Itália, os homens viviam 32 anos; as mulheres, 33 anosHoje, em apenas duas gerações, temos uma média de vida de 79 anos no caso dos homens e 82 anos para as mulheres. Portanto, a média de vida dobrou em apenas duas gerações.”


Em Atenas, na Era de Péricles [século V a. C., apogeu da democracia ateniense], havia 40 mil homens livres, 20 mil metecos - estrangeiros naturalizados - e 350 mil escravos. Cada homem livre, em Atenas, tinha entre escravos, esposas e donas de casa, oito ou nove escravos à sua disposição. Hoje temos as lava-louças, as máquinas de lavar, elevadores, telefones... Calcula-se que tenhamos em média 33 escravos por pessoa.”


Agora, o Brasil... É claro que o país ainda tem um percentual enorme de pessoas em situação rural, pré-industrial, ou até mesmo em um ruralismo muito, muito antiquado. Mas uma sociedade se caracteriza não pelos extremos inferiores; mas, pelos superiores. O Brasil também é hoje uma sociedade pós-industrial. Porque os métodos de domínio e poder são pós-industriais, e não rurais. Podemos falar de sociedade pós-industrial mundial, até nos países mais atrasados, já que participam de uma divisão internacional de tipo pós-industrial. Ou seja, em primeiro lugar no mundo, a hegemonia é açambarcada pelos países que têm o monopólio das idéias, da pesquisa científica, das patentes, da mídia de massa. Depois vêm os países cuja produção é industrial. E, enfim, os países condenados a consumir sem produzir.
O Brasil está nesta situação: não é mais um país condenado tão somente ao consumo, mas ainda não é um país ideal. É um país onde há deslocamento de fábricas. Cem anos atrás, um país onde havia muitas fábricas era um país líder, um país de poder. Hoje um país que tem fábricas é um país atrasado. Uma fábrica, na sociedade pós-industrial , não digo que seja como uma favela, mas falta pouco. Um país não é evoluído se tem muitos supermercados e muitas fábricas. Os supermercados e fábricas, que na era industrial indicavam o progresso, indicam hoje uma situação intermediária entre Primeiro e Terceiro Mundo.
Isso é visível nos salários. Em média, a hora de trabalho em Nova Iorque custa US$ 24. Em Cingapura, custa US$ 7; na China, US$ 1; na Malásia, US$ 0,65; e no Brasil custa US$ 12. Portanto, é uma situação intermediária entre os países líderes e os subalternos. É um grande perigo, mas também uma grande oportunidade. O Brasil poderia tornar-se o país líder entre todos os países, todas as nações que não são mais do Terceiro Mundo, mas que devem dar o salto para o Primeiro Mundo.”

Eu, no entanto, acho que um país rural pode passar diretamente para o pós-industrial, sem perder tempo na fase industrial, desde que tenha condições: grandes universidades, uma grande literatura, e uma grande arte. Agora eu lhe pergunto: seu país tem uma grande literatura, uma grande arte, uma grande pesquisa científica? Imagino que sim, quanto aos dois primeiros itens. E quanto ao terceiro, não. O Brasil tem tudo para se tornar líder na arte, na literatura, e no tempo livre, mas ainda não desenvolveu muito a pesquisa científica. Acho que poderia se tornar o líder dos países intermediários, justamente neste setor. Pois esses países - e neles incluo a Itália, que é o país de onde venho - são países que, muitas vezes, são atrasados devido à pesquisa científica”


Todo universitário sabe ler e escrever. Portanto, pode ensinar isso a uma criança. Se cada universitário de Fortaleza, no exame, qualquer um, química, física, matemática ou sociologia, além de levar os livros de estudos, levasse também uma criança alfabetizada, cada estudante alfabetizaria ao menos vinte crianças. Em três ou quatro anos, não haveria mais analfabetismo lá”.


O senhor, no final dos anos 80, falava que a questão do trabalho se voltava entre o proletariado e a burguesia, que nos anos 80 a batalha se dava entre inovadores e tecnocratas conservadores. E essa década, que é a década de 90, que está acabando, seria uma década de criativos versus burocratas. Com o embrulho financeiro dos nossos dias, no final dos anos 90, o senhor acha que há excesso de criatividade ou é excesso de burocracia?”


Estamos num mundo em que se reduz progressivamente a tarefa executiva, que é delegada às máquinas, e reduz-se o espaço dos burocratas. Por sua própria vocação, os burocratas são sádicos. Um burocrata é feliz quando pode matar as idéias dos criativos. O burocrata é feliz ao poder dizer a frase: “Lamento, mas venceu o prazo”. É a frase que maior orgasmo proporciona aos burocratas. [risos] O burocrata vê os limites, ao passo que o criativo vê as oportunidades, e transforma até vínculos em oportunidades. Vamos em direção a um mundo em que não há mais o burocrata - e devemos dizer que muitas vezes são corruptos - e, com o álibi do vencimento dos prazos, tentam corromper os clientes. Na sociedade pós-industrial, haverá cada vez menos lugar para os burocratas. Felizmente, pois eles são o oposto da estética, além do oposto da criatividade. A criatividade e a estética são as dimensões que, mais do que qualquer outra coisa, determinam nossa felicidade. E os burocratas determinam a nossa infelicidade.”


Max Gehringer: O senhor defende sempre que as empresas devem criar mais tempo livre para seus funcionários. Com mais tempo livre, eles vão ser mais criativos; sendo mais criativos, eles vão ser mais felizes. O mundo parece estar caminhando na direção oposta, porque uma das doenças executivas que nós temos neste final de século é o estresse: a enorme pressão cada vez maior que a empresa exerce sobre o funcionário, a pressão que o funcionário exerce sobre ele mesmo. E hoje parece que é moda dizer: “Eu estou estressado”. Desperta certa simpatia. Quando lhe dizia isso, minutos atrás, o senhor me disse: “O estressado é um masoquista!” [De Masi sorri e balança a cabeça em sinal de concordância] Então, eu gostaria que o senhor me explicasse isso, por favor.”

Domenico De Masi: Os progressos, tecnológico e organizacional, permitem a produção de maior número de bens e serviços com menos trabalho humano. De um lado, isto determina que, fora da empresa, o desemprego aumente. De outro, dentro da empresa, determina um fenômeno que chamo de "horas extras”. De fato, dentro da empresa, os empregados podem produzir muito mais em menos tempo. Isto quer dizer que hoje qualquer executivo, após quatro ou cinco horas, poderia ir embora. Mas os executivos se acostumaram a ficar somente no escritório. Acrescente a isto o ódio pra com a família; o ódio para com as atividades domésticas, sempre consideradas por eles como de qualidade inferior, adequadas às suas esposas.”


Concluí há pouco uma pesquisa sobre onze empresas italianas. O resultado foi que o trabalho dos executivos - não falo do alto executivo, mas do médio - é um trabalho que leva no máximo 5 ou 6 horas. Todos poderiam ir embora depois disso. Mas, na Itália, - não sei se aqui é assim - o executivo não só fica as 4 ou 5 horas necessárias, como fica até o fim do expediente. E, para demonstrar fidelidade ao chefe e à empresa, fica ainda mais algumas horas, que chamo de horas extras. Por isso, todo executivo aprendeu a estender para dez ou doze horas a atividade que podia realizar em 4 ou 5 horas.
O que ele faz nesse tempo em que fica a mais na empresa? Ele faz duas coisas: ou faz reuniões, - [close em Gehringer, que ri do comentário do sociólogo] - geralmente inúteis, ou então cria normas para os outros. Por isso, aos poucos, a empresa se torna um grande emaranhado de normas



As horas extras geram muita tristeza nas empresas. Os executivos felizes são raros. E, muitas vezes, se convencem de que o dever da empresa não é a felicidade dos funcionários. Mas observei que as empresas que têm mais êxito são as que seus funcionários são mais felizes, pois onde são mais felizes são mais criativos e, portanto, mais eficientes. Naturalmente, cria-se um círculo virtuoso que é o oposto das empresas onde impera a burocracia, nas quais todos estão tristes, diminui a criatividade e, portanto, a eficiência.”


De qualquer forma, Galbraith diz que as empresas americanas são sempre menos criativas. Não foram fabricantes de máquinas de escrever mecânicas que inventaram as elétricas. Os fabricantes de máquinas de escrever elétricas não inventaram as eletrônicas. Não foram os fabricantes de válvulas que inventaram o transistor. Aliás, a ITT [companhia global de engenharia e manufaturados, que comercializa, dentre outros produtos, conectores eletrônicos de aplicação computacional, industrial, aeroespacial e em telecomunicações], que detinha o monopólio do transistor, vendeu a patente a Akio Morita, presidente da Sony, pensando que o futuro seriam as válvulas e não os transistores.
Há um déficit de criatividade que a empresa hoje resolve de duas ou três formas. Primeiro: compra patentes nas universidades. Segundo: faz uso da terceirização. Ou seja, manda fazer fora o que antes ela mesma fazia. Assim, as pessoas mais inteligentes vão embora. E ficam os burocratas. Então, formou-se um círculo vicioso. Quanto menos criatividade há, menos criativos são atraídos. Acrescente a isso a ação dos selecionadores. Se o selecionador já tiver certa idade, ele é uma pessoa frustrada, que queria fazer carreira e não conseguiu. E, portanto, odeia os criativos. Usa testes e técnicas para individualizar os criativos e descartá-los do processo seletivo. Então, é raro que dentro de uma empresa apareça alguém criativo. Quando a empresa está lotada de pessoas que executam sem criatividade alguma, manda-as fazer cursos de criatividade. É como se gostasse de loiras, casasse com uma negra e a fizesse tingir o cabelo porque gosta dela loira. [risos]”

Milton Seligman:  (...)   O senhor fala isso também em seus textos, que é mais fácil inventar que administrar o progresso. Com várias variáveis do desenvolvimento fora de controle das lideranças dos Estados Nacionais e dos órgãos internacionais, como fica a questão democrática na globalização e no pós-industrial?
Domenico De Masi: É um problema muito sério. Primeiro por causa, justamente, da globalização. Talvez fale disso depois. E pela inversão das relações entre política e economia. Isto porque a política, no passado, era a garantia dos interesses gerais; e a economia, a garantia dos interesses privados, sobretudo a economia de mercado. Sabe-se que, com a economia de mercado, ganha o melhor empreendedor, o qual, dessa forma, atende aos próprios interesses. Mas acaba também atendendo um pouco aos interesses da coletividade. Nesse momento, economia e política entraram em conflito e os portadores de valores econômicos, os empreendedores, propuseram a economia como disciplina geral no lugar da política. E hoje temos uma exaltação do mercado, como haviam sido exaltadas, antes, as teorias econômicas: o capitalismo, o marxismo ou o utilitarismo.
Agora, a teoria econômica tornou-se uma teoria geral. Isso cria um grande perigo, em minha opinião. Embora a economia se proponha a ser uma teoria geral, ela continua a se basear nos vencedores, e não nos perdedores, ao passo que a sociedade é constituída por ambos, e o Estado democrático tem mais interesse no bem-estar dos perdedores do que no dos vencedores. Hoje, a economia tem duas grandes ferramentas. A primeira é a globalização que, em parte, é algo real e, em parte, uma ideologia. Os executivos amam demais as ideologias, mas, às vezes, reclamam das coisas de nível ideológico. Por exemplo, hoje falam muito de flexibilidade. Mas, se perguntar a um deles o que é, ele não sabe. Hoje, falam muito de globalização. Mas, se perguntarmos o que é, ele não sabe.

Somos globalizados em tudo. Não só a economia foi globalizada; nossa personalidade e nossos sentidos também. Os nossos olhos. Vemos em qualquer lugar os mesmos filmes. Nosso ouvido. Ouvimos em qualquer lugar a mesma música. E até o olfato. Todos os aeroportos do mundo têm o mesmo cheiro. Os grandes hotéis do mundo têm o mesmo cheiro. Vivemos em uma globalização psicológica que, de um lado, transforma o mundo numa grande vizinhança, mescla as experiências, mas, do outro lado, aniquila as diferenças. E aniquilar as diferenças é terrível.
O outro aspecto importante é que os políticos estavam acostumados a ter o feedback do povo, dos eleitores, a cada quatro ou cinco anos. A economia introduziu uma nova forma de votação de consenso ou de dissensão. É a bolsa, a bolsa de valores. Enquanto eu, cidadão, para discordar do meu político devo esperar quatro anos, a bolsa, em poucos segundos, aumenta ou abaixa o índice. E pode dizer a um político, antes mesmo que ele apresente um projeto de lei, que não está de acordo. Pela primeira vez, as finanças mundiais têm uma arma que político algum, em nenhum lugar do mundo, pode impedir. É um grande obstáculo para a democracia. São dois os obstáculos. Os executivos, com sua mentalidade autoritária e não democrática, e as finanças mundiais, que se permitem reprovar um político, tirando toda a sua liberdade a qualquer hora. É como o índice de audiência da mídia de massa”


Mônica Falconne: O senhor já conseguiu nos convencer que a criatividade é um recurso essencial para a economia atual, e eu fiquei com uma dúvida. Criativo: a gente nasce, ou a gente pode ficar? Pode se transformar, ou aprender a ser criativo?
Domenico De Masi: (...) A primeira coisa é entender em que somos criativos. Pois cada um é mais criativo em uma coisa do que em outra. Na época, se Mozart não fosse filho de Leopoldo, que tinha uma grande paixão por música, e fosse filho de açougueiro ou de médico, seria açougueiro ou médico, e teríamos perdido um grande músico. A primeira coisa a fazer é identificar as qualidades de base da criatividade de uma pessoa. Em quê cada um de nossos filhos é mais criativo?
Depois, com essa base de caráter natural, é necessário um trabalho de caráter estrutural e de formação. A criatividade não é um ponto de partida. É um ponto de chegada. Criativo é aquele que é capaz de dar o melhor com o que herdou da natureza, aliando-o ao aprendizado. Contam que uma senhora muito rica teria pedido a Picasso um retrato. Picasso o fez em segundos e cobrou muito caro. A mulher disse: “Mas isto só levou alguns segundos. Não deveria custar tanto”. Ele respondeu: “Não foram alguns segundos. Eu levei a vida toda para pintá-lo”.


Nossos avós viviam 300 mil horas e trabalhavam 120 mil horas. Nós vivemos 700 mil horas e trabalhamos no máximo 70 mil horas. Enquanto nossos avós trabalhavam metade da vida, nós trabalhamos um décimoMas escola e família nos preparam para o trabalho. Ninguém nos prepara para o tempo livre. Muito menos a empresaPor isso, o executivo de quem falei, que fica 10 ou 12 horas por dia no escritório, quando sai, no fim de semana, leva trabalho para casa, pois não sabe fazer mais nada. Muitas vezes, no verão, na praia, liga para o escritório para ter notícias do trabalho. É obcecado pelo trabalho.


E depois, aos 55 ou 60 anos, ele é mandado embora. Por prevenção, nesta idade, se é mandado embora e, para ele, não há a morte imediata, como acontecia com o avô. Por 20 ou 30 anos de vida, ele não sabe o que fazer. Essa distinção entre tempo de estudo quando jovem, tempo de trabalho, quando maduro, e aposentadoria, quando velho, é uma loucuraA velhice não se calcula em relação ao nascimento, mas em relação à morte. Somos velhos nos últimos dois anos de vida. Quando o homem vivia 50 anos, ficava velho aos 48. Mas hoje, quando ele vive 80 anos, fica velho aos 78 anos. Ou seja, ao se aposentar aos 60 anos, até os 80, há uma vida fisicamente forte e psiquicamente desequilibrada, perdida.
Perdemos inteligência por não identificarmos talentos e, ao identificá-los, não os formamos como devíamos. E depois os perdemos porque os usamos apenas 20 ou 30 anos, quando podemos usar até uma criança, desde que trabalhe bem e pouco, faça seu aprendizado e aprenda. Podemos usar as pessoas para o resto da vida. Acho que o futuro reserva um tipo de atividade em que será impossível distinguir estudo e trabalho de tempo livre


Nossos escritórios são feitos para bloquear as idéias. Nossos escritórios são gaiolas de vidro, terríveis, onde não nos sentimos bem. Somos obrigados a conviver com colegas antipáticos, com chefes muitas vezes mal-educados, comendo em self-service carne fria, e coisas péssimas. Ficamos o tempo todo lá. As empresas fazem de tudo a fim de trazer para dentro o bar, o restaurante, a creche, a fim de evitar a saída dos colaboradores. É preciso mudar tudo isso. E, sobretudo, educar as pessoas para o tempo livre. Se no século XX vivemos, principalmente, de trabalho, no próximo, viveremos, sobretudo, de tempo livre. E a maioria dos países não está preparada para isso, pois a maioria dos países desenvolvidos está tão imersa no frenesi do trabalho que já não sabe o que fazer com o tempo livre


Luxo sempre foi o que é raro. Houve o tempo do dinheiro, depois o dos carros de muitas cilindradas e depois foi a vez dos barcos. Hoje, as coisas raras são, sobretudo, o tempo, o espaço, o silêncio, a autonomia, a segurança. Estes são os grandes luxos para o século XXI. Devemos nos preparar


Domenico De MasiÉ certo que o sucesso é uma forma de reforçar a perseverança. Todo criativo se depara com o desafio de uma proposta em relação à qual não sabe se o sucesso é certo ou não. Enquanto o burocrata fala do passado, referindo-se sempre a uma lei ou a um decreto do passado, o criativo promete o futuro. Enquanto o burocrata tem razão nove vezes em dez, o criativo erra nove vezes, mas, quando acerta uma vez, está abrindo novos caminhos à Humanidade. O livro parte da seguinte premissa: a criatividade resulta de fantasia e realização.
Paulo Markun: Não adianta ser só criativo?
Domenico De Masi: Sim. Porém, acontece o seguinte: é difícil encontrar alguém muito fantasioso e criativo ao mesmo tempo.


Então, a nossa hipótese foi a seguinte: se é difícil encontrar gênios, pessoas que, ao mesmo tempo, têm muita fantasia e são muito realizadoras, é possível criar criativos coletivos, formados por grupos em que uns têm maior fantasia, e outros têm maior capacidade de realização? Percebemos que, a partir de 1800, começou na Europa, como em outros países, o aumento de grupos criativos, constituídos pela presença conjunta de fantasiosos e realizadores. Os grupos estudados, que foram os maiores grupos europeus do último século até 1950, demonstraram o seguinte: todos eram constituídos por fantasiosos e realizadores. Continuamos a pesquisa - o segundo volume será publicado - sobre grandes grupos criativos do mundo, de 1950 até hoje. Estúdios de cinema, laboratórios de pesquisa científica e assim por diante. Lá também temos sempre fantasiosos, realizadores e um líder carismático.

O futuro que vai se basear no tempo livre e na produção de bens, sobretudo, por máquinas nos dará a possibilidade de cultivar as necessidades do tipo essencial. Uma coisa é certa: a sociedade industrial se baseava numa organização em que imperava o controle. As pessoas trabalhavam porque eram controladas. A sociedade pós-industrial tem por base uma organização centrada na motivação. Posso dizer a um operário: “Venha amanhã às sete horas e comece a fabricar parafusos”. Não posso dizer ao intelectual: “Venha amanhã às sete horas e comece a fabricar idéias”. As idéias serão produzidas apenas se esse trabalhador estiver intimamente motivado. A arte do controle é fácil. Até os militares sabem controlar. A arte da motivação é muito difícil. Isso implicará uma seleção de líderes, com base em sua capacidade de dar uma visão e motivar seus dependentes e colaboradores.

Danilo MirandaEm recente palestra, o senhor mencionou que os valores da sociedade industrial são baseados, sobretudo, na produtividade e na racionalidade, mas que os valores da sociedade pós-industrial são baseados na criatividade, na estética, na subjetividade, na individualização, e nos chamados valores femininos, que poderão, no futuro, ser andrógenos.


Mas hoje nos damos conta de que as empresas não progridem sem idéias e que isso, como já disse, requer fantasia, subjetividade, estética e emotividade. Os homens percebem que não conseguem mais. E quem tem um depósito plurissecular desses valores que hoje são importantes? É como se, de repente, o petróleo fosse importante e descobríssemos que o senhor tem petróleo, e eu não. O petróleo do pós-industrial é criatividade, estética, emotividade, subjetividade. Quem tem isso são as mulheres. Não é dádiva da natureza. É que nós as descuidamos, e elas as cultivaram. Era só o que podiam cultivar. De fato, hoje nos campos de maior criatividade, no cinema, no teatro, na literatura, na imprensa, na televisão, o número de mulheres cresce sempre mais. Caminhamos para uma sociedade em que a mulher é considerada à altura do homem.

Mônica FalconneProfessor, como mãe de dois garotos eu queria saber que tipo de formação o senhor aconselharia para enfrentar o próximo milênio, para enfrentar esses desafios que o senhor descreveu tão bem?
Domenico De MasiEu já disse as duas coisas. Educá-los para o tempo livre. Ninguém nos diz como escolher um filme. Ninguém nos diz como escolher uma ópera. Ninguém nos diz o que ouvir nem como ouvir música. Ninguém nos ensina a curtir as pessoas passando. Eu me encanto. Se estiver sentado no banco e vejo as pessoas passando, é maravilhoso. É um dos mais bonitos divertimentos. Se for ao cinema, o mais bonito, além do filme, é ficar fora olhando o rosto das pessoas que saem e ver como, em cada um desses rostos, o filme deixou uma impressão diferente. A primeira coisa é ensinar a curtir o que está a nossa volta. E já chegamos à segunda questão, a estética. Dar uma educação muito estética. Pois a estética é equilíbrio, harmonia. A estética é a beleza até mesmo no feio. Como educar para a estética?

Porque educação significa dar sentido às coisas. Quanto mais educação se tem, mais se descobre o sentido das coisas. O sentido de qualquer coisa me diverte, até mesmo o que a indústria cultural nos dá como lixo. A indústria cultural tem um grande problema. É um problema pedagógico. Esse problema pedagógico ou se reduz a um problema de astúcia intelectual, portanto, censuras e tudo o mais, ou se traduz numa questão de propostas intelectuais.
O grande perigo da sociedade pós-industrial é justamente a indústria cultural. É claro que somos manipuláveis. Por sorte, estamos ficando cada vez menos.


Acho, porém, que a indústria cultural é algo de que devemos nos proteger e induzir a ser positiva. Acho que hoje há um problema de excesso de informações. Assim como temos excesso de gordura no organismo e vencemos isso com dietas de emagrecimento, assim induzo meus estudantes a fazer dietas de emagrecimento de informações. Acostumo-os a ficar dois dias sem comprar jornal. Provavelmente, com o tempo, o prazo de dois dias passará a três. Ou então, acostumo-os a ficar dois dias sem assistir a TV. No terceiro dia, verão que nada de importante aconteceu. Devemos aprender a gerenciar as informações, de acordo com nossas escolhas. É como no caso dos bens dos quais falei antes. Aqui também entra o gosto estético. A estética nos deve guiar na escolha dentro da infinita variedade de informações de que, por sorte, todos usufruímos.

Domenico De MasiOs países pobres, muitas vezes, tem a mania de se achar criativos. O sul da Itália é mais pobre que o norte. Mas, qualquer habitante do sul, - e eu também sou - pensa que é mais criativo que os do norte. Não, absolutamente não, porque a criatividade é algo sério. Hoje, ela não se mede apenas pela pizza. Ela se mede pelas patentes. Quantas patentes têm um Estado? Uma cidade? E, entre as patentes, quantas são realmente importantes

Acho que na criatividade existe também a força de fazer as pessoas crescerem com forte união de classes e a ausência de burocracia.